UMA PAZ PROMETIDA

 

UMA PAZ PROMETIDA

                                                                        CARMEM TERESA ELIAS

Desde a invenção da imprensa por Johannes Gutenberg em 1450, uma difusão  do acesso à educação e ao conhecimento tornou-se tema progressivamente acirrado com vistas a assegurar o acesso a um aprimoramento intelectual, cultural, emocional e comunitário. No primeiro momento, a Bíblia foi dos primeiros livros a serem impressos em maior quantidade. E a ciência juntamente com o Renascimento e suas artes vieram logo atrás.

A área de Humanas — Artes, Literatura, Filosofia, entre outras—constitui uma das etapas de conhecimento mais importantes para o desenvolvimento da cidadania, da ética, da moral, do pensamento crítico; enfim, itens que evoluem para a compreensão da importância da harmonia, da paz, da liberdade de expressão, do respeito aos direitos humanos, à vida, à diversidade, à preservação do planeta e à sobrevivência da espécie humana.

O filósofo francês Denis Diderot (1713-1784), notável Iluminista, idealizador da Grande Enciclopédia com princípios essenciais das artes e das ciências, e também cérebro e idealizador da Revolução Francesa, foi um dos grandes autores que partiram em defesa dos direitos e liberdades dos cidadãos. Sua obra destaca a eliminação das diferenças existentes nas sociedades, segundo o autor, única maneira de se interromper os ciclos de violência, preconceitos e guerras a fim de ser possível sustentar o equilíbrio social indispensável à paz. De Diderot, ganhamos a citação: “Ter escravos não é nada, mas o que se torna intolerável é ter escravos chamando-lhes de cidadãos.” Em outras palavras, Diderot escrevia argumentando contra a desumanização da existência e a precariedade da falta de ações que de fato edifiquem a dignidade humana. Seu ideal era a defesa da liberdade, do progresso, da tolerância e da fraternidade. O autor já denunciava que “do fanatismo à barbárie não há mais do que um passo”. A História, tanto predecessora, quanto sucessora ao autor comprova a verdade de suas palavras. A ascensão do nazismo séculos depois, o holocausto, os atentados terroristas já seriam exemplos mais do que justificáveis para se concordar com Diderot.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos só foi promulgada em 1948 na Assembleia Geral das Nações Unidas após a humanidade ter presenciado mais um cataclisma social com o genocídio. Tantos séculos para se implantar o único pensamento lógico, coerente e ético de respeito à vida. E nem mesmo assim as barbáries cessam. Apesar de tantas evidências históricas, a civilização humana segue em contínuos atentados contra a justiça, a verdade, e a vida.

A voz dos grandes pensadores que lutaram e lutam em prol da paz jamais pode ser obliterada. Estas vozes perpassam por nossa consciência em variadas formas: filmes, estudos, obras de arte, textos literários, descobertas científicas. Ciências e Humanas necessitam mais do que nunca se ouvirem e serem ouvidas. Porém os impasses entre Bem e Mal, certo e errado encontram-se longe de serem solucionáveis.

Não podemos nos deixar esquecer de Mahatma Gandhi, ‘a Grande Alma’, ao pregar o discurso pela paz como única arma capaz de conceder a liberdade. É dele a famosa máxima “Olho por olho e o mundo acabará cego’. A mesma cegueira também é narrada na literatura pelo escritor português José Saramago, Nobel de Literatura de 1998, autor de Ensaio sobre a Cegueira’, obra na qual afirma que ‘estamos a destruir o planeta, e o egoísmo de cada geração não se preocupa em perguntar como é que vão viver os que virão, depois’. O autor alerta que vivemos sob o culto do agora, sem responsabilidade pelas consequências que serão deixadas: ‘a única coisa que importa é o trunfo do agora. É a isso que eu chamo a cegueira da razão’. 

A cegueira social, ou insensibilidade, ou falta de capacidade de se enxergar a realidade humana se manifesta em preconceitos, segregação, indiferenças. Um dos maiores defensores do direito à igualdade foi Nelson Mandela (1918-2013), político que combateu arduamente contra a política de segregação racial que separava negros e brancos na sociedade excludente da África do Sul. Mandela nos ensinou que apesar de viver preso por décadas, entre 1964 e 1990, ‘ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, declarou Mandela, as pessoas precisam ser ensinadas e, sendo possível que aprendam a odiar, então também é possível que elas possam ser ensinadas a amar. Em 1993, Mandela recebeu o Prêmio Nobel da Paz.

No Brasil, podemos destacar as obras do poeta da Amazônia, Amadeu Thiago de Mello (1926-2022), considerado um dos mais influentes representantes da poesia regional. Diplomata, preso, exilado, nos conturbados anos da década de 60-70-80. Dele, temos a herança do seu poema intitulado Estatutos do Homem, obra na qual a poesia leva o leitor a refletir, por 13 artigos e um final, sobre os valores da vida. Entre os versos encontram-se preciosidades como “fica declarado que agora vale a verdade, agora vale a vida”, “o homem não precisará nunca mais duvidar do homem”, “o homem ficará livre do julgo da mentira”. O poema reintegra o homem na natureza, no meio ambiente, vida na vida, em todas as coisas vivas, palmeiras, girassóis, pão, suor, ternura, permissão de permitir. As metáforas de Thiago de Mello são elos entre situam a verdade em elos entre a vida e a natureza:” fica proibido o uso da palavra liberdade...no pântano enganoso das bocas’.

Paralelo aos ideais de Thiago de Mello, destaca-se também a obra de Antonio Candido (1918-2017), grande intelectual, professor e crítico literário, defensor dos direitos humanos e da justiça social. São deles as palavras: “uma sociedade justa pressupõe o respeito aos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável”.  De visão universal, o professor conclama o papel fundamental da literatura e da arte como ‘uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo elas nos organizam e nos libertam do caos.

Os exemplos citados, verdadeiros arautos da palavra como Verbo da Paz, abrem nossas visões para o quão significativos são os caminhos que temos para nos orientar. Entre a cegueira e a compreensão reside o olhar de senso moral e crítico governado pelos princípios da ética. Se a Filosofia sempre se preocupou com a elevação do ser humano, por que ouvir o caos, a destruição e a morte? Diante da maldade e da perversão, a Arte jamais de cala. Quem não reage com indignidade diante de uma tela como Guernica de Pablo Picasso? Como novas gerações se deixam cair nas tentações das guerras, se a História já nos mostrou tanto mal? O esquecimento do passado pode ser nossa pior arma de aniquilamento. Dotado de memória, por que o ser humano repete os mesmos erros ao longo dos séculos? Diante desta indagação e a partir da arte cinematográfica como fonte de resgate da história, cito o filme Oppenheimer, que retrata a vida do cientista criador da bomba atômica.

Não é apenas sobre a bomba atômica e seu criador. Tampouco se trata de um julgamento, apenas. O que está em debate é o impasse continuo entre conhecimento e poder.

Do mito de Prometeu (que roubou o fogo dos deuses para entregar aos homens) à Ciência, a questão de maior seriedade é a responsabilidade. Por causa da responsabilidade, ou falta dela, punições ocorrem, pelos deuses, ou melhor, como consequência natural das ações humanas. O delito de Prometeu não foi o roubo do fogo em si; foi a irresponsabilidade de entregar o fogo a uma espécie irresponsável: a humana. Entende-se fogo, na alegoria do mito grego, como conhecimento.

Junto com o fogo veio a curiosidade, conquista eterna por mais saber. O problema, muito bem alertado principalmente pelas peças do teatro grego, é que o homem não aceita o limite humano e vive em estado de procura por se igualar aos deuses. O homem é o Narciso de Deus. Ele define a si mesmo como imagem e semelhança de Deus, portanto, isenta-se de limites. Nesta busca desenfreada, perde-se a noção de responsabilidade. O conhecimento, obviamente, é a onisciência: estende-se sem fim ao tudo querer!

Oppenheimer representa a busca do homem pelo conhecimento. A um cientista compete entender e descobrir. Sua busca é pelo ‘como’, pelo funcionamento do universo, pelo desvendar da natureza e potenciais da Criação. O outro lado da moeda, e que na maioria das vezes foge ao escopo da ciência, é o uso que dela se fará. Entra em cena o desespero pelo Poder. O cientista não busca o poder. Mas a Política, sim. E para perpetuar-se no poder, o ser político utiliza-se, ou não, do conhecimento da ciência para impor ainda mais o exercício de seu poder sobre o mundo.

Portanto, a primeira discussão a ser abordada é o embate entre o conhecimento e o poder; em outras palavras, entre a Ciência e a Política. A ambos os lados, contudo, pesa o segundo argumento sem solução: a impiedosa falta de ética e de valor moral que pode se abater sobre ambos os envolvidos na prática científica e no uso político que dela será feito.

Nessa disputa sem limites o valor humano é o primeiro a ser extinto. Segue o terceiro dilema: como uma chama de fogo que não alimenta a lenha pesada, a vida do ser humano é o que menos vale no conflito bélico. O número de mortos é só uma estatística. A vida queima como lixo descartável. A morte passa a ser combatida com mais mortes, por ambos os lados de um conflito. A questão de ordem passa a ser o poder de destruição, pouco importa se todo o planeta será aniquilado. É o ‘deslimite’.

Aparece então o quarto dilema sem solução: compartilhar o conhecimento ou não. Naquele contexto em que Estados Unidos e Rússia eram unidos contra a Alemanha nazista, caberia aos cientistas compartilharem as descobertas atômicas entre si? Deveriam aos cientistas dos lados americanos e russos dividirem suas conquistas? A ciência é para todos, ou deve ser privilégio do lado político que captura a pesquisa da ciência? A quem compete entregar ou não o fogo aos homens: aos cientistas ou aos governos?

Se as fórmulas da bomba atômica fossem exclusividade americana, não iria o mundo inteiro ser submetido exclusivamente ao poder americano? Se somente a Rússia detivesse o saber fazer, não seria o mundo subjugado a seu domínio? E se o conhecimento for compartilhado? E se ambos tiverem acesso ao fogo de Prometeu? Sabia Prometeu que os homens se dividiriam por domínios políticos e triariam embates entre si?

Prometeu foi culpado e inocente por falta de responsabilidade com as consequências. Os cientistas são culpados ou inocentes pelos usos que serão dados a suas descobertas? Os impérios, os impérios são responsáveis por estarem subjugados à ganância de serem os donos do mundo? Onde pesa a responsabilidade dos governantes sobre o domínio da vida e da morte sem escrúpulos nas guerras? Onde desaparece o valor humano?

Quem já leu o mito de Prometeu e seu destino? A nova chama tem cérebro de lata. A inteligência pode se tornar um legado da humanidade às máquinas. Haverá paz? Haverá? A resposta cabe ao ser humano responder, porém antes, ele ainda precisa aprender a perguntar.

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