ABANO LÉQUIO


Das Histórias de família, conta-se na minha a de um famoso leque de marfim e plumas com o qual uma antepassada foi ao último baile do Império, na ilha Fiscal. O objeto, que nunca vi, tornou-se lendário na minha infância. ‘Quem afinal herdou o leque?’ era o que a menina curiosa que sou (ainda)  queria desvendar. Não sabemos. Tivemos na família viscondes e viscondessas, cujos retratos pintados estão até hoje em museus e igrejas do Rio e de Petrópolis. 

Lembrei-me do leque ao assistir à ópera Tosca no Teatro Municipal de São Paulo. Na peça, um leque é o objeto-armadilha que instiga uma falsa traição,  armada para causar ciúmes e delatar o paradeiro secreto de um procurado. Há semelhanças entre o leque em Tosca e o lenço roubado em Othelo de Shakespeare. Simples objetos femininos, fáceis de serem esquecidos, achados, perdidos, porém capazes de serem manipulados para despertar ciúmes e culminar nas tragédias e mortes literárias. Simples objetos para deflagrar temas universais – como ciúme, traição, amor, inveja. 

Os bailes do Império também morreram, e os leques de plumas sumiram. Alguns até viraram peças em exposições no Museu Imperial na Serra Fluminense. Foi o caso, por exemplo,  do leque de D. Maria II, filha de D Pedro I, rainha de Portugal nascida no Brasil: única monarca da Europa a nascer nas Américas (Brasil). O leque em questão reproduz a cena alegórica na qual Dom Pedro I apresenta a constituição do Reino de Portugal e Algarves, de 1826. Na imagem pintada, ficou o registro de  Maria II (1819-1853), apelidada de “A educadora” e “A boa mãe”.

Eu coleciono alguns leques em casa: japoneses, espanhóis, italianos, chineses, muito mais como peças de decoração do que como ornamentos de abano contra o calor. Aliás, leques já foram até armas brancas na Antiguidade! 

Foi pensando em meus leques que me deparei na estante com uma preciosidade literária: o livro de contos Leque Aberto da escritora e amiga Raquel Naveira. Ao contrário das histórias secretas e tramas invejosas, o leque de Raquel ventila páginas de surpresas que se abrem em movimentos de espírito e acalentam uma fantasia que adorna e dá voltas, com leveza que agita. Raquel revela e esconde com seu leque uma artimanha que seduz, no ciclo de abertura, semicírculo e fechamento como um trajeto entre o nascer, crescer e morrer. 

Todo leque é plural. Plural nas hastes, nas plumas, nas figuras, nas cores, nas rendas. Plural como a literatura de Raquel Naveira, que abre a palavra à realidade, à memória, ao sonho, ao labirinto da razão que conjuga saberes e une culturas, artes, música, mitologia, filosofia. Olhar atento para lugares, mãos, rostos, risos e sofrimentos, em acertado entrelaçamento de percepção, lucidez e alma que gira sobre o eixo das palavras. 

Leques se abrem e se fecham: gosto da beleza dos que se expõem, abertos! Refrescam a alma, as palavras, os espíritos e corpos  literários, com ou sem os caos trágicos das óperas, com ou sem os cães sem plumas de outros grandes autores, porém todos são tão encantadores como livros: palavras de segredos, verdades ou ilusões deliciosamente abertas  em nossas mãos. 

Imagem: leque de D Maria II

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